sábado, 26 de janeiro de 2008

ELLA, ELLA, Ê, Ê, Ê 5

Em outubro (ou foi novembro?) de 2007, a minha amiga Kátia perdeu a mãe e o pai em uma semana. Num sábado de muita chuva, de manhã foi o enterro do seu pai; à tarde foi a missa de sétimo dia da sua mãe.

Somos amigas desde que tenho 13 ou 14 anos. Ela era (é) a filha única mais generosa, altruísta que conheci: Tudo o que tinha, tratava de compartilhar conosco. E ela tinha muito daquilo que me era caro no início da adolescência. Amigos surfistas ou velejadores, camisetas Hang Ten, fluência no alemão, pais pacientes e dedicados para nos levar e buscar nas festas. Festas do Porto Seguro, do Humboldt, da Waldorf, no Club Transatlântico, no YCSA – todos os lugares onde se reunia a juventude teuto-brasileira de São Paulo.

Quando entendi que o papel dos pais ia além de nos comprar camisetas Hang Ten e nos levar e buscar nas festas, e que a vida ia muito além disso, também entendi que era dos seus pais que a Kátia havia herdado sua generosidade e seu altruísmo. Mais: Seu bom humor, sua lealdade, sua ética. E seus atributos físicos, que ela sempre foi linda.

Pronto. Era essa a mensagem que eu diria para a Kátia após a missa de sétimo dia da sua mãe. Eu diria que os seus pais estariam sempre vivos nela, e desejaria que ela encontrasse, em si, o desapego para lidar com essa perda.

Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Mal começa a missa e me dou conta que não estou com o meu guarda-chuva Burberry. Sim, eu saí de casa com ele. Chovia torrencialmente. E então parei na Select da Lorena com a Peixoto Gomide para tirar dinheiro e tomar um cafezinho. E então atravessei a rua até o ponto de táxi. Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas. Tomei um táxi até a igreja. Eu o esqueci, portanto, na Select ou no táxi – e quem, num dia tão chuvoso, resistiria à tentação de levar guarda-chuva tão conciso, chic, lindo?

É nosso dever e nossa salvação. Ah, não se trata apenas de um objeto. Tampouco de um fashion statement. E não preciso entrar no mérito do valor afetivo desse objeto: Ele é, em si, a síntese elegante e portátil da arte milenar de proteger-se do sol e da chuva. Ele está no meio de nós. Sim. Esse objeto não apenas abracadabra apareceu. Ele é o aperfeiçoamento do – bem, sobre isso falo outra hora.

O amor de Cristo nos uniu. Talvez ele ainda esteja lá, na Select ou no táxi. Se eu o deixei na Select, talvez a barista o tenha guardado para mim. Ou talvez ele ainda esteja ali, pendurado na cadeira onde me sentei para tomar o meu cafezinho. Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe.

E agora, enquanto aguardo a minha vez de falar com a Kátia, enquanto recapitulo a minha mensagem de desapego para a minha amiga que perdeu a mãe e o pai em uma semana, dou-me conta de como me é difícil desapegar-me até mesmo de um guarda-chuva.

Esses são os filhos da Kátia, Juliano e Victoria. Eles também herdaram os atributos físicos dos avós. Ah, e são surfistas.

4 comentários:

Too-Tsie disse...

Desapego sempre é muito difícil, de objetos, e muito mais de pessoas.
Talvez por isso que eu não consigo me livrar de certos objetos, por mais inúteis que sejam, pra mim é como se nele estivesse guardado uma história em particular, algo como um backup de quando minha memória falhar.
Recentemente perdi um ipod shuffle, imagino que ele esteja escondido em casa, mas se não estiver, paciência.
Quando somem coisas de casa, opto pelo bom humor e imagino um diabinho, um saci escondendo o objeto. Chega de acrescentar drama a vida, desconfiar de terceiros, etc e tal. De repente eu ganho um nessa promoção doida do picolé kibon né?

Anônimo disse...

Lúúúúúú!
Que mundo maluco esse de blog que vc habita!
Se não é Anili para dar a dica perderia a chance de me ver com a poesia pura de seus olhos! Não me cabe bem, mas quem sou eu para bater de frente com suas lentes de contato e a re-descoberta da paixão pela e por chuva? Vale então um empréstimo por "conta" das Hang tens? Olho no espelho e devolvo....promessa!!!!!!
As chuvas de outubro, este foi o mes,foram mesmo muito especiais, coincidência ou não, no horário exato da missa de sétimo dia dele o céu desabou de novo, lavou a alma, deixou tudo mais suave, como um símbolo de devolução. Recebemos como um presente, as "bailarinas" falam, acariciam e confortam!
Aos poucos nos desapegamos dos objetos, das roupas, esvaziamos a casa.......transferimos para o coração, nada se perde! Sem palavras para agradecer o carinho e amor de sempre, com vocês por perto a vida sempre valerá a pena.
Mooooonte de beijo!
K.

Alberto Pereira Jr. disse...

desapegar-se é realmente difícil. Tudo o que já nos pertenceu ou fez parte de nossas vidas, de um simples guarda-chuva, até um amor estão marcados nos vincos de nossa memória. Não devemos nos desapegar de entes queridos falecidos, eles sempre estarão de alguma forma presentes.

Marco A Iarussi disse...

A chuva, a missa, os pais, o evangelho e o apego... um verdadeiro brainstorm!

"...livrai-nos do mal, amém."