terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

CAIXA DE PANDORA

Versão que li para o meu grupo de desenvolvimento pessoal no ISH em dezembro de 2007, a partir de registros postados em março de 2007: IT’S TOO DARN HOT, CAIXA DE PANDORA, LIVRE ARBÍTRIO, DUKKHA ARIYA SACCA, EPÍSTOLA AOS ROMANOS

Há muita coisa aqui ao redor do porto da balsa em Porto Seguro onde, nessa manhã de carnaval, eu e o Thomas esperamos pela Sabine. Estamos no Bar da Japonesa, mas me sinto um pouco – na caixa de Pandora!

Caixa de Pandora? Por que um julgamento tão sumário? É porque eu tenho, por natureza ou formação, uma mente voltada a julgar, analisar, opinar, criticar? Isso me ajuda, e muito, quando avalio o perfil de risco e retorno de um investimento. Mas e aqui? Isso me atrapalha, e muito. E se eu buscasse, como ensina o Krishnamurti, observar sem julgar? E como é que eu começo? Talvez ampliando os meus sentidos – e registrando cada pedacinho do que sinto.

Há o calor e a umidade que me lembram que há uma pele que me separa do mundo. Tenho filtro solar e Off pelo corpo todo. Nos lugares em que fui picada, e há muitos deles, há Polaramine. Sinto que a minha pele está impermeabilizada e o calor, trancado no meu corpo. Não transpiro. O suor escorre por alguns poucos e inusitados poros. Sinto-o atrás das minhas orelhas, no meio das minhas costas, atrás dos meus joelhos. Há insetos que voam próximos dos meus ouvidos, os que insistem em posar no meu nariz, outros que mordem, picam todos os pontos em que não passei Off.

Há o estridor da rampa de ferro da balsa arranhando o concreto do porto. Há o barulho das Kombis com pouca manutenção, dos buggies e seus motores expostos, das buzinas que soam ora em comemoração ao carnaval, ora em protesto à fila. Os passageiros que gritam êêêêêêêêêêêê porque seus carros finalmente entram na balsa. E há o som distorcido e rachado dos carros envenenados com autofalantes gigantescos e sua música que parece se repetir. E esse é um som que não me chega só pelos ouvidos. Também, e mais, por tudo aquilo que toco. Os pés no chão, as mãos e os braços na mesa.

Há o cheiro e a fumaça da fritura dos churros, dos pastéis e dos espetinhos, do diesel do motor da balsa, da gasolina dos vários carros ligando seus motores ao mesmo tempo, alguns porque saem da balsa, muitos outros porque a fila andou. A fumaça, vejo-a com os meus olhos – mas também a sinto machucando os meus olhos e prendendo na minha garganta.

Sim, posso observar cada pedacinho. Mas todos eles juntos chegam-me como um convite à irritação, à impaciência, à exasperação, à falta de razão.

LIVRE ARBÍTRIO
Espera: Um convite não é uma ordem! Não preciso aceitar todo convite que recebo. Já me convidaram para participar de uma caçada, para assistir a uma tourada, para comer buchada de bode. E adivinhem o que?

Tenho muitas escolhas aqui!

Eu posso compensar esse desconforto todo com uma dose de prazer, como tanta gente ao meu redor parece fazer. Devorar uma porção de pastel, tomar uma cervejinha, fumar um cigarrinho.

Eu poderia, aliás, já ter escolhido estar no mundo anestesiada desses e de outros desconfortos, de outras dores da vida. Talvez um uso recreativo de Zoloft, Rivotril, Lexotam?

Eu posso, porque não, distrair-me. Pensar nas minhas coisas favoritas, como ensina a noviça rebelde aos filhos do capitão. Ou simplesmente deixar-me levar pelo pensamento, como ensina aquela outra canção, aquela do pensamento que parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar. Posso transportar-me para a experiência mágica, celta, enfeitiçada que eu tive na estrada de Bonito a Miranda. Visualizar o banho que eu tomarei tão logo chegar a algum lugar.

Mas e se eu deixasse a minha mente aqui, junto ao meu corpo, sem anestesia? Ainda assim teria uma escolha? Mmmm...sim! Pois não é só o calor, a umidade, os insetos, o barulho, o cheiro e a fumaça. Não. Há aqui uma paisagem bem mais complexa. Há uma vibe aqui, alguma energia compartilhada, há algo a qual as pessoas curtem pertencer. Sim, Lúcia: É dia de sol na Bahia, é manhã de carnaval!

Ainda tenho pelo menos mais uma escolha: Posso escolher aquilo com o que me sintonizo nessa paisagem, aqui e agora. Que paraíso escolher me sintonizar com o dia de sol na Bahia de Caetano, com a manhã de carnaval de Luiz Bonfá e Antonio Maria. E que inferno me sintonizar com o calor, a umidade, os insetos, o barulho, o cheiro e a fumaça.

Sei que ainda tenho essa liberdade de escolha. Mas também sei que, agora, essas duas alternativas não se apresentam em igualdade. Agora é tão mais forte, atraente, quase irresistível sintonizar-me com o calor, a umidade, os insetos, o barulho, o cheiro e a fumaça – com aquilo que será o meu próprio inferno.

Cacá, Flávia, como é mesmo que eu trago aqui a minha presença?

Um comentário:

Jackson Morais disse...

Poizé, lidar racionalmente com aquilo que nos aflige é de um nível de sabedoria enorme. A gente deveria fazer musculação para os sentimentos, para a mente, para pensar na vida. Texto muito bom.
;-)