Reflexões sobre eu e o álcool, 1
Não me sirva o seu Romanée-Conti. Não vale a pena: Tenho os sentidos apuradíssimos para muitas coisas, mas álcool não é uma delas. E não me faltam só os sentidos apurados para degustar o melhor do álcool. Talvez também me falte um fígado adequado para digerir qualquer álcool. Que delícia ser como naquela canção do Kid Abelha, depois de 3 taças, qualquer um me encanta, tudo sai de graça, qualquer um se torna minha grande paixão. Mas para mim, depois de 3 taças, é sempre aquela náusea.
Foi aos 17 anos, quando entrei na faculdade, que me senti pela primeira vez cercada por pessoas que bebiam. E mais: Por pessoas que não eram indiferentes ao meu consumo de álcool: Elas esperavam que eu bebesse, elas me incentivavam a beber. E eu? Humph. Bom, eu queria pertencer justamente a essa, er, turma do funil. E olha que havia todas as turmas por ali – incluindo os Opus Dei, para quem beber era uma violação do corpo, contraproducente à sublimação da alma, e os PCdoB, para quem beber era uma alienação da vida, contrário aos ideais da revolução.
Talvez por ser mulher, talvez por ter-me cercado de pessoas intelectualizadas, nunca fui objeto de um trote, de um ritual onde a minha aceitação numa comunidade fosse explicitamente condicionada ao consumo de quantias insanas de álcool. Não. Vi-me sujeita a uma versão bem sutil desse processo de iniciação. Estudei na Faculdade de Direito da USP e na University of Ottawa, no Canadá – e a construção de camaradagens e vínculos nesses espaços passava, e muito, pelos arriba, abajo, al centro y para dentro. E eu, ali, ora insistindo na minha água, ora trapaceando com o mesmo copo de destilado, brincando com os gelinhos.
O álcool aos 17, 18 anos é um rito de passagem da infância à vida adulta. Mas ali e então, eu não via isso com tanta simplicidade. Eu me sentia desafiada, incitada a mostrar audácia, coragem, ousadia de beber – e não gostava nada daquela sensação. A época em que eu estudei no Canadá era a do Just Say No (to peer pressure), uma campanha anti-drogas dirigida a crianças e adolescentes. Yeah, like it is that easy: Ainda me era difícil como uma mulher casada, aos 25 anos.
Mas o que me surpreende é que esse sentir-me cercada por pessoas que esperam que eu beba, essa dificuldade to just say no, eu não os deixei no início da minha vida adulta: Ainda hoje os trago. Mas agora eu me sinto não desafiada, mas convidada. E não convidada a beber em si – mas convidada à entrega, à vulnerabilidade, à perda de controle, a deixar-me levar pela embriaguez. E um convite à minha vulnerabilidade é-me bem mais sedutor do que um desafio à minha coragem. Mas ainda aquela náusea depois de 3 taças, e ainda os sentidos pouco apurados para o melhor do álcool.
É claro que uso de álcool é diferente, e muito, de abuso de álcool. Mas não consigo pensar em nenhum outro produto cujo uso seja tão amplamente incentivado. Talvez sua avó incentive que você coma um pedaço de bolo; seu personal trainer, mais proteína; seu clínico geral, que você beba mais água; a publicidade, uma Coca-Cola. Mas reconheça: Com maior freqüência há alguém, ou algo, incentivando que você beba álcool, ou mais álcool.
E por que é assim? Talvez porque vejamos o álcool como algo divino desde, bem, desde sempre. Pense em Baco e nos rituais de embriaguez nas Dionísias gregas ou nos Bacanais romanos. Pense na festa judaica Purim, onde se deve beber até não se saber diferenciar o amaldiçoado Haman do abençoado Mordechai. E pense, com tantos poderes, e no meio de um povo com tantas necessidades, no milagre que Jesus de Nazaré escolheu como o seu primeiro: Transformar água em vinho numa festa de casamento em Canaã da Galiléia. Falo sério.
quinta-feira, 20 de março de 2008
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3 comentários:
O álcool é um problema de saúde pública no Brasil...
É um prazer imenso, quase dionisíaco, ler seus textos.
;-)
nunca fui de beber.. bebericava do copo de meus pais um golde de cerveja ou chope.. brindava com uma taça de champagne no Revéillon.. e só.. mas entrei na faculdade.. e logo no fim do primeiro semestre o primeiro porre..
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