segunda-feira, 3 de novembro de 2008

OUTRO RETRATO EM BRANCO E PRETO

Quando, nos anos 90, os jornais começaram a estampar fotografias coloridas, aquilo me pareceu um desastre. Não que eu achasse que a essência da fotografia é o branco e preto, como disse Henri Cartier-Bresson. Ou que eu visse o mundo em branco e preto, para falar com Sebastião Camargo. Nem que eu concordasse que cores, em fotografia, tiram a elegância e a seriedade do jornalismo. Nada disso. Fotografia colorida em jornal pareceu-me uma grande idéia – mas a execução, isso sim, era um desastre. O jornal chegava às minhas mãos com fotografias coloridas cheias de distorções cromáticas, fantasmas e sombras.

Muita coisa mudou desde então.

Outro dia chegou às minhas mãos um exemplar do jornal gratuito Metro. Um anúncio de página dupla, central, estampava uma enorme barra de chocolate. Num dos cantos faltava uma mordida, cada dente bem definido, sugerindo que ele tinha a consistência do chocolate que se morde, não se parte com as mãos. E não só a consistência que a imagem sugeria – mas também a maciez que senti ao tocar-lhe com a ponta dos dedos. Trouxe-o para perto do rosto – sim, o aroma de chocolate vinha do anúncio.

Não fosse uma fotografia estampada num jornal, acredito que o meu cérebro processaria as informações que a minha visão, o meu tato e o meu olfato percebiam para concluir que eu estava diante não de uma imagem – mas de um chocolate, ele mesmo.

Se eu estivesse numa galeria de arte contemporânea, teria sido uma experiência de hiper-realismo. Como eu folheava um jornal – eu era alvo de uma ação de marketing sensorial. Neurocientistas, psicólogos e Marcel Proust estão a descobrir como o olfato, o mais primitivo dos nossos sentidos, é uma conexão direta às nossas memórias, às nossas emoções, aos nossos desejos. E os profissionais de marketing estão a usar essas descobertas para influenciar nossas decisões de consumo. Deixo essa fascinante reflexão para outro dia.

Hoje recorro a essa experiência com o jornal Metro porque ela deixa claro que existe tecnologia para produzir e imprimir fotografia colorida de muita qualidade, em alta escala, a custos razoáveis – mesmo para ser veiculada num meio de comunicação feito para durar um só dia. Ainda assim, o preto e branco continua fuerte. Nos vídeos de música, nos comerciais, nos editoriais de moda e estilo, no jornalismo, na arte. I wonder why.

Talvez porque sejamos nostálgicos – ainda que de um passado que muitos de nós sequer viveu.

Talvez porque algumas coisas fiquem melhor em branco e preto. Pense na adaptação para o cinema dos romances policiais a la Raymond Chandler e Dashiel Hammet – o film noir. Em estrelas de Hollywood fumando. Nos garimpeiros de Serra Pelada. Para sair do mundo das imagens, pense no tabuleiro de xadrez. Ou no keffieh – lenço-símbolo da cultura palestina transformado em objeto-culto no mundo da moda.

Talvez porque, no meio de tanta informação visual, alguma simplificação nos faça bem. Pense no vídeo de alto contraste para a deliciosa American Boy – precisa de alguma outra cor?

2 comentários:

Alexandre Lucas disse...

Admiro gente decidida. O Cartier-Bresson manteve-se fiel à fotografia em filme em preto e branco até sua morte em 2004, quando as máquinas digitais já eram uma unanimidade.

Um dos grandes fotógrafos da Life e outras publicações, teve a felicidade de, em seus 95 anos de vida, testemunhar e documentar os principais acontecimentos do Século XX: a Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial, a liberação de Paris em 1945, o movimento dos estudantes de 1968 em Paris, a ascensão do comunismo na China, o assassinato de Mahatma Gandhi, a queda do muro de Berlin...

Mas a fotografia colorida foi um avanço irreversível. Compreendo sua (Lúcia) resistência inicial. Lembro-me de quando a Folha de São Paulo começou a estampar fotos coloridas. Foi um começo difícil, especialmente porque a reserva de mercado nos obrigava a usar maquinário nem sempre adequado. Contudo, recuemos um pouco mais no tempo, quando o off-set permitiu as primeiras fotos em preto e branco nos livros. Cunhou-se a expressão de que uma imagem valia por mil palavras, e custava o mesmo =D

Pessoalmente, sempre dou boas-vindas às novidades tecnológicas. Como diz o amigo Pavinatto: "o mundo gira e a lusitana roda."

Adorei o artigo!

Rico E disse...

Lux,
Adorei este post!
Determinados cheiros me trazem a tona certas lembranças, como se estivessem linkados no meu cérebro.
A pouco tempo fiz um post sobre Marcel Proust, tudo a ver!!!
Besos,
Rico E