Sobre ações amorosas, 2
É claro que há um amor que se sente. E não me refiro apenas ao eros, ao amor romântico. Eu mesma já lhes mencionei uma experiência mística que tive em 2007, um sentir-me amada por um Deus pai, um abba, um papai. Ainda não estou preparada para compartilhar essa experiência aqui. Mas a quem me perguntar pessoalmente, eu conto.
Enfim. Depois da reflexão com o meu grupo de desenvolvimento pessoal no ISH, como comecei a contar em SANS LE CHOIX, JE NE SUIS RIEN, dei-me conta de que o amor de que fala A Liberdade é Azul, para o qual Paulo escolhe a palavra grega agape, traduzida para o latim como caritas – esse amor não é um sentimento. Ou, ao menos, não é só um sentimento. Bento 16, na encíclica Deus Caritas Est, diz que "o sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial, mas não é a totalidade do amor". Até porque "os sentimentos vão e vêm".
O que é, então, o amor de que fala A Liberdade é Azul? Para a Cynthia e o Scott Peck, é uma ação.
Mas essa ação é desencadeada por um sentimento amoroso? Não necessariamente. A mãe age com amor com o filho que ama – e mesmo quando, chorando a noite toda, ele lhe desperta irritação ou raiva. (Bom, nem toda mãe consegue, muito menos sempre.) A nossa protagonista age com amor com a mulher que desconhece – e que, imagino, desgoste. A irmã Helen Prejean (retratada em Dead Man Walking de Tim Robbins) age com amor com o homem que assassinara dois adolescentes brutalmente – um homem que, imagino, cause-lhe algum tipo de repulsa.
E eu? Eu procuro agir com amor com alguém que eu amo quando, ali e então, esse alguém me desperta irritação ou raiva. Mas, reconheço, isso requer um bocado da minha energia: Eu também tenho um cérebro reptiliano programado para agir em modo, como diz Lenine em Do it, “se tá puto, quebre; tá feliz, requebre”. Agir com amor com alguém que desgosto? Sim, quando essa é a minha escolha. E agir com amor com alguém que desgosto requer ainda mais da minha energia – e sequer me ocorre doar-lhe a minha herança.
Com alguém que me causa algum tipo de repulsa? Bom, interajo pontualmente com pessoas que me causam algum tipo de repulsa – mas nunca cheguei a me relacionar continuamente com elas. É uma experiência muito diferente daquela da minha amicíssima Cláudia A.: Ela trabalha, dentro de uma penitencíária, como advogada de mulheres carentes em cárcere. Estou envolvida nos esforços de cultura de paz liderados, em São Paulo, pela Palas Athena – e isso envolve a luta por cidadania e dignidade para todos, inclusive aqueles que cometeram crimes hediondos. É um amor em ação? Quero acreditar que sim. Mas o exerço sem interagir com aqueles que cometeram crimes hediondos. Seria diferente se eu interagisse com eles e, conjecturo, com ao menos um pouco das suas agressividades? Talvez. Seria diferente se entre as suas vítimas estivesse alguém que eu amasse? Talvez.
Digo talvez porque eu desejaria, numa situação-limite, seguir o exemplo virtuoso e libertador de Massataka e Keiko Ota: Eles escolheram perdoar (perdoar, o que é diferente de inocentar ou deixar impunes) os homens que seqüestraram e mataram seu filho Ives, de oito anos. E fundaram uma organização de cultura de paz que, entre outras coisas, trabalha pela recuperação de presos. Mas por vezes alguma coisa se perde entre o que eu desejo fazer e o que eu consigo fazer.
Há, ainda, mais uma pergunta: Essa ação amorosa que faço por alguém que não amo, e que não é desencadeada por um sentimento amoroso – essa ação se faz seguir de um sentimento amoroso? De acordo com A Liberdade é Azul, não necessariamente. Apesar de sua ação amorosa, até o final do filme vemos a nossa protagonista rodeada de uma certa malaise. O amor que ela escolheu não lhe deu um mundo brilhante, colorido e fácil – o mundo de que fala, por exemplo, o personagem apaixonado de Gene Kelly em Singin' in the Rain. O amor que ela escolheu também não se fez acompanhar de uma sensação de alegria, felicidade ou mesmo completude. Pelo menos não lá e então. Mas libertou-a (ou ajudou a libertá-la) da vingança e do ressentimento – e isso, como atesta Ota-san ("o ódio come a gente"), é muita coisa.
Quanto à minha própria experiência, não sei. Preciso prestar um pouco mais de atenção. Provavelmente eu sinta algo mais próximo do alívio ("mantive-me centrada") do que do amor. Algo que, imagino, a Joss Stone ou a Beyoncé devem ter sentido quando o Ashton Kutcher anunciou-lhes: "You just got punk'd!".
Mas essa ação amorosa, se eu a faço por alguém que não amo, se ela não é desencadeada por um sentimento amoroso, se ela não se faz seguir de um sentimento amoroso – o que cria essa ação amorosa? E por que, entre tantos adjetivos, qualificamos essa ação como amorosa?
A encíclica Deus Caritas Est ajuda-nos com a primeira dessas perguntas: Bento 16 diz que o amor pode ser criado pela vontade. Mas não nos ajuda com a segunda dessas perguntas: Bento 16 não diz o que o amor é. Talvez, imagino, porque na visão cristã de Deus, Deus é amor. E Deus, quando Moisés perguntou-lhe o seu nome, respondeu: אהיה אשר אהיה. Eu sou o que sou. O amor, logo, é o que é.
Enquanto eu apreendo o amor que é o que é, deixo-os com (what a surprise!) uma versão remixada de Gloria Gaynor interpretando I am what I am, de La Cage aux Folles. Por muito tempo esta blogueira acreditou que I am what I am fosse o nome não de Deus – mas dessa canção.
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Um comentário:
não sei o que é o amor, mas sei o que é amar e a sensação maravilhosa que nos invade. Não sei se sou tão bom a ponto de amar alguém que comete um crime hediondo, principalmente contra um ente querido. Não sei se sou magnânimo a esse ponto. Mas saber que na humanidade existem pessoas tão abnegadas é reconfortante, mesmo que seja na ficção (que se foi imaginada, é possível).
O menino Ives Ota estudava no meu colégio. Não o conhecia, mas lembro o ambiente árido que se formou a partir da notificação de sua morte.
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